sexta-feira, 2 de outubro de 2009

"Comer demais faz mal"

A cobertura feita pelo jornal Folha de S.Paulo da recente medida da Prefeitura de São Paulo para cortar gastos está sendo, no mínimo, curiosa e sutilmente tendenciosa. No dia 18 de setembro de 2009, a Folha noticiou a desistência de Gilberto Kassab de cortar uma refeição das creches. No mesmo dia, o prefeito dissera que fazia “tão mais mal à saúde comer demais como comer de menos”. A declaração de Kassab apareceu cinco vezes naquela edição – uma na capa e quatro na primeira página do caderno “Cotidiano”. No dia 19, ocupou a seção “Frases”.


Num primeiro instante, o leitor de “Cotidiano” vê crianças em uma creche e um Kassab sorridente. O repertório visual e cultural deste leitor pode fazê-lo olhar mais atentamente ao que está representado. O olhar assustado e inocente de algumas crianças que compõem a fotografia, a creche que não possui nem lençol para forrar o colchão, o rosto do prefeito aparentando malvadez, o corte da foto do prefeito, supostamente em uma cozinha, que deixa aparecer um pote de margarina. Abaixo do rosto, a declaração: “Existe uma exposição de motivos que mostram que as crianças não podem ter uma alimentação superdimensionada. Faz tão mal à saúde comer demais como comer de menos”.


Em 20 de setembro, a seção “Folha Corrida” da Folha de S.Paulo evidenciou os “foras e tropeços” de 13 a 19 de setembro. O jornal não só relembrou como também destacou a afirmação de Kassab, publicando-a no topo da lista de “tropeços” da semana. Desta vez, acompanhada de uma fotografia, tirada por Raimundo Pacco em 24 de julho de 2008, do prefeito comendo um pedaço de bolo, além do título “Comer, comer”.

O semioticista Louis Hjelmselv dizia que o valor do signo é determinado por seu contexto. A foto de Kassab comendo o bolo não teria valor algum se fosse publicada sem justificativa. Com a declaração, a imagem ganhou sentido especial, talvez mais do que na ocasião em que fora registrada: 24 de julho de 2008, às vésperas de eleição municipal da qual Kassab fora o vencedor.

Novamente, a Folha demonstra sua opinião. A intenção do jornal é provocar ironia e contradição na própria fala que acompanha a fotografia, completando o raciocínio divulgado nas fotos das crianças. Kassab, o “malvado”, cortou uma refeição das crianças “pobres e inocentes” da creche que não possui nem lençol para forrar o colchão, sob o pretexto de cortar gastos da prefeitura. Como prova de sua perversidade, comeu um pedaço de bolo – fato ocorrido um ano antes.

A cobertura da Folha de S.Paulo sobre a fala de Gilberto Kassab prejudica ainda mais a imagem do prefeito em São Paulo, duramente criticado por reduzir a verba para varrição de ruas em 20%, noticiada pela Folha em 13 de agosto. No dia 9 de setembro, o mesmo jornal noticiou o temporal que atingira São Paulo, destacando o excesso de lixo nas vias, entupindo os bueiros e intensificando os alagamentos. A decisão de cortar uma refeição nas creches pode ser interpretada como “mais um tropeço” do prefeito. A Folha reproduz o sentimento do cidadão pela gestão atual, uma estratégia para manifestar a opinião do leitor e do próprio jornal.

Um comentário:

  1. Devo dizer que, quando esses artifícios são usados "contra" o Kassab, eu aprecio.

    Bela análise, Pacheco. Simonetta Persichetti sentirá orgulho de você!

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